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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A teoria da relativização da coisa julgada

A teoria da relativização da coisa julgada

Autor(es): Ondina Leite da Cunha

Valor Econômico - 26/08/2010

 

Nos últimos tempos, são cada vez mais constantes as alterações da jurisprudência dos tribunais superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF). Essas mudanças podem ter efeito nas relações jurídico-tributárias consumadas pela coisa julgada.

A coisa julgada é uma garantia constitucional que tem como base principiológica o direito fundamental à segurança jurídica, assegurado no caput do artigo 5º e no preâmbulo da Constituição Federal, sendo de grande importância para a estabilidade das relações jurídico-tributárias.

Muitas vezes a segurança jurídica se choca com outros princípios constitucionais de mesma carga axiológica, sendo preciso analisar, dentro do sistema constitucional, qual princípio deve prevalecer ou se é possível uma solução na qual se otimize os princípios envolvidos.

Nesse sentido, vem crescendo no direito brasileiro a moderna teoria da relativização ou flexibilização da coisa julgada inconstitucional: decisões judiciais de mérito que, a despeito de serem contrárias à Constituição, alcançam o status de imutabilidade de sua existência formal e de seus efeitos.

Uma das hipóteses da coisa julgada inconstitucional ocorre quando o STF se pronuncia definitivamente pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade, em sentido contrário ao proferido na decisão de mérito transitada em julgado.

Como a alteração do entendimento da jurisprudência ocorre repetidamente, é preciso verificar quais os efeitos dessa decisão nas relações consumadas pela coisa julgada e as possibilidades de se relativizar uma sentença tida como inconstitucional por decisão posterior do STF.

Por exemplo, no âmbito do direito tributário, em razão da natureza constitucional da maioria das ações judiciais, muitos contribuintes obtêm decisões judiciais com força de coisa julgada no sentido da constitucionalidade de uma exação qualquer. Posteriormente, o STF consolida o seu entendimento em sentido contrário (inconstitucionalidade da exação) e outros contribuintes, em situação fática e normativa idêntica à dos primeiros, em razão de uma nova forma de decidir do Supremo, obtêm uma posição de vantagem, também transitando em julgado seu pleito.

Os primeiros estão em clara desvantagem financeira em razão da incidência de um tributo por uma decisão do Judiciário que já alterou a sua posição e considera aquele comando inconstitucional. Os outros, em razão do novo entendimento pela constitucionalidade da exação, estão em evidente vantagem patrimonial (não têm que recolher o tributo).

Na hipótese, o princípio da isonomia, previsto na Constituição, que também é um de seus epicentros axiológicos, disposto no artigo 5º e no artigo 150, II, está sendo violado. Exatamente neste ponto se insere a discussão mencionada: deve prevalecer a imutabilidade do conteúdo da decisão proferida pelo Poder Judiciário em nome da segurança jurídica ou deve sofrer um juízo de ponderação de valores, de modo a ser cotejado com outros princípios de igual estatura constitucional?

Como a segurança jurídica não é um princípio absoluto, ela deve ser ponderada em razão de outras normas postas pela Constituição, tais como a isonomia. A coisa julgada não pode sempre ser superior a outras garantias e a outros princípios de mesma carga hierárquica, há de se fazer uma ponderação dos valores envolvidos.

A necessidade de ponderação é um imperativo de razoabilidade, de conformação das normas, na medida em que efetivamente muitas vezes elas apontam para direções diametralmente opostas.

A relativização da coisa julgada, quando viola os princípios, as garantias ou as normas constitucionais, se justifica no próprio artigo 5º , XXVI, da Constituição. As decisões transitadas em julgado que violam ou contradizem os dispositivos e princípios constitucionais não podem ser invioláveis: a lei não pode ser alegada contra a coisa julgada, mas a Constituição, em certas situações, pode.

O próprio sistema processual brasileiro prevê algumas possibilidades de relativização da coisa julgada, desmistificando o seu caráter de intangibilidade absoluta. O artigo 485 do Código de Processo Civil (CPC), por exemplo, dispõe sobre as hipóteses nas quais a sentença transitada em julgado poderá ser rescindida. O artigo 741 e parágrafo único do CPC permitem a alegação, em sede de embargos à execução de sentença, da inexistência de citação no processo de conhecimento e de inexigibilidade do título fundado em lei declarada inconstitucional pelo STF. Assim como o artigo 475-L, parágrafo 1º , do CPC também admite esta mesma alegação em sede de impugnação à execução.

Certo é que diante de um conflito entre o princípio da segurança jurídica (materializado através da coisa julgada) e o princípio da isonomia, da capacidade contributiva ou mesmo o princípio de justiça, ao qual devem ser submetidos todos os jurisdicionados, deve-se ponderar, no caso concreto, qual deverá prevalecer.

Isso porque não há de se negar a autoridade da coisa julgada. No entanto, também não há de se falar em intangibilidade ou de imutabilidade absoluta, uma vez que pode ser alterada pelos instrumentos processuais já citados.

Destaca-se, no entanto, que a coisa julgada deve ser mantida na grande maioria dos casos, mas em determinadas situações cederá para que também seja prestigiado outro princípio constitucional material (como isonomia ou moralidade) ou instrumental (como da força normativa da Constituição e o da máxima efetividade das normas constitucionais).

Nesse passo, ressalta-se que a solução deve ser obtida pelo método da ponderação de valores ou ponderação de interesses, mediante a utilização do princípio instrumental da razoabilidade-proporcionalidade.

Por fim, há que se ter em mente que a ponderação já é uma técnica excepcional, residual, notadamente quando tratado de princípio de tamanha fundamentalidade, como o da segurança jurídica. E a coisa julgada é uma garantia de concretização do princípio, o que reduz a margem de flexibilidade do intérprete.

 

Valor Econômico, 26 de agosto de 2010

https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/8/26/a-teoria-da-relativizacao-da-coisa-julgada

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