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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Estatais, inadimplemento e precatórios

 

Estatais, inadimplemento e precatórios

Autor(es): Egon B. Moreira

Valor Econômico - 19/07/2011

 

 

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) instalou significativa discussão a propósito de determinadas empresas estatais poderem (ou não) pagar os seus débitos por meio de precatórios. Mais especificamente, a tese foi discutida a respeito de sociedade de economia mista estadual, que desenvolve atividade econômica passível de ser qualificada de serviço público - geração e fornecimento de energia elétrica. Trata-se do Recurso Extraordinário nº 599628, em que o Plenário do STF, por maioria, julgou que o regime de precatórios não se aplica a sociedades de economia mista. Muito embora o caso já tenha sido julgado, o debate tem o condão de instalar sérias preocupações.

O pagamento de débitos públicos por meio de precatórios foi instalado na Constituição brasileira de 1934. É uma técnica por meio da qual a fazenda pública deve lançar os débitos judiciais de um ano no orçamento do ano seguinte e, assim, pagá-los pela ordem cronológica de seu vencimento. A Constituição atual é clara ao consignar que tal rito se aplica aos "pagamentos devidos pelas fazendas públicas" da União, Estados, Distrito Federal e municípios (Constituição de 1988, artigo 100).

Em tese, os precatórios que as pessoas políticas lançam no orçamento são pagos no ano seguinte e todos seguem felizes, com créditos e débitos compostos. Mas fato é que isso só acontece na teoria: boa parte das fazendas públicas simplesmente não paga os precatórios e, ano após ano, os débitos crescem, a ponto de tornar inviável o seu pagamento. Por isso que são tantos os pedidos de intervenção federal em curso no STF - ajuizados para que seja nomeado um interventor em alguns Estados, a fim de que ele ordene o pagamento de precatórios vencidos.

É inviável estender o regime de precatórios às sociedades de economia mista

Dessa forma, o regime de precatórios é mais uma das peculiaridades do direito constitucional brasileiro: feito para permitir o planejamento dos débitos e o respectivo pagamento ordenado, transformou-se num modo de legitimar o inadimplemento público. Tanto isso é verdade que esse inadimplemento contumaz gerou um aumento significativo do volume de débitos e a consequente edição de várias emendas constitucionais a alterar a racionalidade do artigo 100 da Constituição - e do artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A mais recente delas foi a Emenda Constitucional nº 62, de 2009, cuja proposta recebeu o apelido de "PEC do Calote" - não se faz necessário o exame de tal emenda para se constatar o impacto que ela gerou no universo de credores das fazendas públicas.

Pois bem, esse é o cenário que parte do STF julgou aplicável a determinadas sociedades de economia mista - em vista o fato de que a companhia envolvida prestaria um serviço público (tese que foi refutada, sobremodo devido à instalação de concorrência no setor elétrico). O tema, contudo, exige exame crítico.

Ora, as sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado, criadas por lei e instituídas pela administração pública, as quais se prestam a desenvolver empreendimentos empresariais - como se dá no caso da Petrobras e do Banco do Brasil, por exemplo. São ditas de economia mista por que conjugam investimentos público e privado. As receitas e despesas das sociedades de economia mista seguem, portanto, os preceitos destinados às empresas privadas.

Quando muito, tais companhias se submetem ao controle do Tribunal de Contas da União e devem obediência a determinadas leis de ordem pública. A rigor, o seu regime não é absolutamente igual ao das demais empresas privadas, mas é de direito privado administrativo: o Estado-administração a se valer do direito privado para atingir objetivos de interesse público - com variação de matizes, a depender da empresa. Porém, isso não significa dizer que as sociedades de economia mista integram o conceito de fazenda pública. Tampouco significa a viabilidade de estender o generoso regime dos precatórios às sociedades de economia mista - esse seria o melhor dos mundos para os devedores e o inferno dos credores (sobretudo para as atividades em situações de monopólio, como se passa em algumas estatais).

Afinal, nada há na Constituição brasileira que permita a conclusão de que sociedades de economia mista ou empresas públicas, prestem ou não serviço público, integrem a chamada fazenda pública. Os recursos que abastecem tais sociedades não tem essa origem -- e o mesmo se diga de suas receitas, que não tem como destino a fazenda pública. O orçamento não é o mesmo dos demais débitos e créditos públicos, assim como não existem precatórios de direito privado. A tese, por mais nobre que tenha sido a sua inspiração, apenas produz a multiplicação dos riscos e a atenuação de responsabilidades: haveria empresas estatais aptas a gerenciar os seus débitos por meio de pagamento diferido, com a consequente institucionalização do inadimplemento privado de débitos privados. Esse é um risco que não merece ser instalado.

Egon Bockmann Moreira é advogado, doutor em direito e professor da Faculdade de Direito da UFPR

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

 

Fonte: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/7/19/estatais-inadimplemento-e-precatorios

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